Mariana Salvatti
Mescolotto: Advogada, especialista em Direito Material
e Processual do Trabalho e assessora jurídica da Federação dos Trabalhadores no
Comércio no Estado de Santa Catarina e do Sindicato dos Trabalhadores em
Centros de Formação de Condutores no Estado de Santa Catarina.
(STF. Fonte: wikipedia) |
Há poucos dias o Ministro do Supremo
Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, concedeu liminar na Ação de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 323, ajuizada pela
Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino, para suspender todos os
processos em curso e os efeitos de decisões judiciais proferidas na Justiça do
Trabalho que versem sobre a ultratividade.
A ADPF n. 323 tem por objeto a nova
redação de 2012 da Súmula 277 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), assim
descrita:
CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO OU
ACORDO COLETIVO DE TRABALHO. EFICÁCIA. ULTRATIVIDADE
As cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas
integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificadas
ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho.
A redação anterior desta Súmula assim
dispunha:
Sentença normativa. Convenção ou acordo coletivos. Vigência. Repercussão
nos contratos de trabalho
I - As condições de trabalho alcançadas por força de sentença normativa,
convenção ou acordos coletivos vigoram no prazo assinado, não integrando, de forma
definitiva, os contratos individuais de trabalho.
II - Ressalva-se da regra enunciado no item I o período compreendido
entre 23.12.1992 e 28.07.1995, em que vigorou a Lei nº 8.542, revogada pela
Medida Provisória nº 1.709, convertida na Lei nº 10.192, de 14.02.2001.
O Ministro Relator da ADPF n. 323 entende
que a nova redação da Súmula 277 decorreu da Emenda Constitucional (EC) n.
45/2004, que alterou a redação do art. 114, parágrafo segundo, da Constituição
Federal (CF), assim disposta:
Recusando-se qualquer das partes à
negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo,
ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho
decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao
trabalho, bem como as convencionadas anteriormente. (sublinhei)
A
redação anterior do art. 114, parágrafo 2º, da CF, previa o seguinte:
Recusando-se qualquer das partes à
negociação ou à arbitragem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar
dissídio coletivo, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e
condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de
proteção ao trabalho
De início, importante destacar que a
Relatoria da ADPF foi distribuída por prevenção ao Ministro Gilmar Mendes, pois
é ele o Relator das Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade (n. 3423,
3392, 3431 e 3520) que tem por objeto os dissídios coletivos de natureza
econômica, especialmente, o “comum acordo”, previsto na Emenda Constitucional
n. 45/2004.
A decisão liminar proferida nesta ADPF
pelo STF considerou a interpretação do TST arbitrária, pois teria usurpado
funções do Poder Legislativo, uma vez que o Princípio da Ultratividade já fora
objeto de Lei, tendo sido esta revogada. De fato, o Princípio da Ultratividade
foi objeto da Lei n. 8542/1992 em seu art. 1º, parágrafo primeiro, tendo sido a
Lei revogada por Medida Provisória no governo de Fernando Henrique Cardoso,
posteriormente convertida em Lei (Lei n. 10192/2001), como medida complementar
ao Plano Real.
Para o Ministro Gilmar Mendes, a Súmula
n. 277 do TST não tem base legal ou constitucional e tende “a aparentemente
favorecer apenas um lado da relação trabalhista”.
Mesmo sendo o juízo da ADPF prevento em
razão de a temática já estar na pauta do STF, a decisão não levou em conta os
direitos dos trabalhadores e, especialmente, as condições atuais das
negociações coletivas após a Emenda Constitucional n. 45/2004 e a previsão do comum
acordo para os dissídios coletivos de natureza econômica pelo art. 114.
A decisão parece ter preocupação com a
valorização das negociações e normas coletivas, como argumentado na decisão em
razão do art. 7º, XXVI, da CF, bem como, ao equilíbrio no conflito entre
capital e trabalho e das partes das negociações coletiva. Contudo, não
considerou o impacto da reforma constitucional feita pela referida Emenda
Constitucional às entidades de classe, que se veem impossibilitadas de
instrumentalizar novas normas coletivas pela recalcitrância patronal em
negociar, aliás, sem qualquer justificativa, pois, em conformidade com a
interpretação literal do “comum acordo”, sem anuência da categoria econômica,
não serão demandados dissídios coletivos de natureza econômica, que garantam a
reposição salarial aos trabalhadores.
O impasse nas negociações foi
estabelecido por meio do comum acordo, pois não há condição melhor ao setor
econômico do que o congelamento dos salários e das condições de trabalho. Não
negociar ficou extremamente vantajoso para a categoria econômica se for
declarada constitucional a EC n. 45/2004, bem como, se prevalecer a
interpretação literal ao “comum acordo”.
Apesar de constar da decisão em análise
que, “é o exame sistemático das disposições constitucionais integrantes do
modelo constitucional que permitirá explicitar o conteúdo de determinado
princípio”, não há consideração sobre a melhoria das condições sociais aos
trabalhadores (Princípio do Progresso Social, art. 7o, caput, da CF), sobre a função constitucional atribuída aos
sindicatos na defesa de interesses e direitos coletivos dos trabalhadores (art.
8o, inciso III, da CF), sobre a valorização do trabalho (arts. 1o, III, e 170,
da CF) e sobre a dignidade da pessoa humana, tampouco, consideração sobre a
recomposição dos salários, somente possível por meio de negociação coletiva.
O STF também decidiu, recentemente,
pela validade do plano de dispensa incentivada por meio de acordo coletivo (RE
590415-RG) “a fim de não desestimular o seu uso”, sendo que, neste julgamento,
entendeu o Ministro Gilmar Mendes que “o texto constitucional valoriza, de
forma enfática, as convenções e acordos coletivos”, especialmente, “para a
mantença do emprego” (possibilitando a redução salarial), a compensação de
horários e a redução da jornada de trabalho e a jornada de trabalho em turnos
ininterruptos de revezamento.
A decisão destaca e valoriza as
negociações coletivas que flexibilizam direitos trabalhistas, tais como as
apontadas de redução salarial e alteração da jornada de trabalho, em total
sintonia com as movimentações recentes de se privilegiar o negociado sobre o
legislado, mas o negociado aqui valorizado é aquele capaz de flexibilizar os
direitos dos trabalhadores.
Segundo a decisão, “a doutrina trabalhista
indica partir o princípio da ultratividade da norma coletiva da premissa de
buscar-se neutralizar a hegemonia da posição do empregador sobre a do
trabalhador no momento da negociação coletiva. Com a ideia de inexistir
negociação livre entre partes desiguais”.
Contudo, o caos é ainda maior, caso prevaleça a interpretação literal ao comum acordo pelo STF e se afaste a ultratividade das normas coletivas. Não se trata mais de tratativas desiguais, mas apenas de flexibilização de direitos, uma vez que a possibilidade de manutenção das conquistas anteriores não mais existem, seja pela ultratividade, seja por meio dos dissídios coletivos de natureza econômica.
Contudo, o caos é ainda maior, caso prevaleça a interpretação literal ao comum acordo pelo STF e se afaste a ultratividade das normas coletivas. Não se trata mais de tratativas desiguais, mas apenas de flexibilização de direitos, uma vez que a possibilidade de manutenção das conquistas anteriores não mais existem, seja pela ultratividade, seja por meio dos dissídios coletivos de natureza econômica.
Vê-se que a manutenção das conquistas
anteriores é componente fundamental para a progressão social das condições de
trabalho e que, sem ela, já não há mais qualquer razão para que a classe
econômica viabiliza uma negociação, a não ser que se reduzam direitos dos
trabalhadores.
A decisão liminar do STF suspendendo a
ultratividade das decisões da Justiça do Trabalho e da Súmula n. 277 do TST não
quer avanços aos trabalhadores. A intenção de flexibilização é evidente. Para a
decisão liminar, a ultratividade ignora “o amplo plexo de garantias
constitucionais e legais já assegurados aos trabalhadores, independentemente de
acordo ou convenção coletiva. Na existência destes, os empregados não ficam
desamparados”, ou seja, a decisão entende que os trabalhadores já têm muitos
direitos e que a negociação coletiva não precisa avançar em relação ao que
prevê o ordenamento jurídico.
Talvez o Relator preocupe-se com tantos
direitos aos trabalhadores e as consequências deste quadro de conquistas de
direitos trabalhistas por meio do movimento sindical organizado, pois
incorporar normas coletivas benéficas ao contrato de trabalho pode “estimular
que o empregador dispense aqueles trabalhadores que tenham cláusulas
incorporadas em seus contratos de trabalho, a fim de admitir outros, com
benefícios inferiores”. Nesta lógica, ter benefícios inferiores é importante
aos trabalhadores, para que se possam manter empregados.
Nesta lógica social e jurídica, a boa
negociação é aquela que não avança. É aquela que mantém o emprego em quaisquer
condições, reduz salários, altera a jornada de trabalho, faz concessões, assim,
mantém-se o maior número de trabalhadores no seu emprego. Não importa o quanto
ganham, quantas horas de trabalho exerçam, etc.
O recado está dado na decisão: “o
vocábulo introduzido pela EC 45/2004 é voltado, portanto, a delimitar o poder
normativo da Justiça do trabalho. Na hipótese de não ser ajuizado dissídio
coletivo, ou não firmado novo acordo, a convenção automaticamente será
extinta”.
Mesmo que se argumente que a convenção
terá sua vigência expirada, mas que os contratos de trabalho continuarão em
vigor e não podem retroceder (sob pena de supressão de outros direitos
fundamentais, como da progressão social), a não ser por meio de nova
negociação, não resta-nos opção a não ser a concessão de direitos previstos em
lei ou na Constituição, pois as normas coletivas não integrarão o patrimônio
jurídico dos trabalhadores e das categorias de trabalhadores e não serão
patamares sólidos de uma nova negociação.
A decisão do STF despreza a luta
histórica dos trabalhadores, das categorias e do movimento sindical nas
conquistas dos direitos previstos nas normas coletivas. Ter em consideração
aspectos históricos, sociais e jurídicos é, ao ver do Ministro Relator, uma
jurisprudência sentimental, panfletária e ativista, e, por isso, descabida. Com
base nesta premissa, atribui ao TST o uso de uma interpretação constitucional
arbitrária ao afastar limites do Estado democrático de direito “para favorecer
grupo específico”, “sem nenhuma base legal ou constitucional”.
Tal entendimento considerado arbitrário
pelo Ministro Marco Aurélio é há muito defendida por muitos juristas da área
trabalhista, como pelo o Ministro Maurício Godinho Delgado, o qual na obra
Curso de Direito do Trabalho (São Paulo, LTr, 2008, p. 161/162) explica que há
três correntes interpretativas sobre a aderência contratual das normas
coletivas: aderência irrestrita, não
podendo mais ser suprimidas; aderência
limitada pelo prazo, restringindo-se ao período de vigência da norma
coletiva e; aderência limitada por
revogação, vigorando até novo diploma negocial o revogue, defendendo esta
última, pelos seguintes fundamentos:
Tal posição é tecnicamente mais correta, por se estar tratando de norma
jurídica - e norma provisória é, regra geral, uma excepcionalidade.
Doutrinariamente é também mais sábia, por ser mais harmônica aos objetivos do
Direito Coletivo do Trabalho, que são buscar a paz social, aperfeiçoar as
condições laborativas e promover a adequação setorial justrabalhista. Ora, a
provisoriedade conspira contra esses objetivos, ao passo que o critério da
aderência por revogação instaura natural incentivo à negociação coletiva.
O incentivo da ultratividade à
negociação é nítido, tendo em vista que “reconhece a natureza de norma jurídica
dos dispositivos convencionais negociados e acentua a força que o ramo
juscoletivo confere à negociação via sindicatos” (DELGADO, 2013, p. 115).
Vê-se que a própria redação do inciso
I, da redação anterior da Súmula 277, não impedia a aplicação da aderência por
revogação, uma vez que restringia a aderência definitiva das normas coletivas ao
contrato de trabalho, o que não é defendido pela corrente da aderência limitada
por revogação, como se pode verificar do entendimento dos Ministros do TST:
A ultra-atividade da norma coletiva, quando adotada a ultra-atividade
condicionada, assegura a eficácia da convenção ou acordo coletivo cujo prazo de
vigência estaria exaurido, de modo a não permitir que a categoria de empregados
permaneça sem uma disciplina de suas condições específicas de trabalho. Sendo
condicionada à superveniência da nova norma coletiva, o surgimento de nova
normatização da matéria faz prevalecer a regra mais recente, ainda que tal
signifique a redução de direito.
(CARVALHO, ARRUDA, DELGADO, 2012)
Os mesmos Ministros do TST entendem que
a defesa da ultratividade condicionada à revogação impede a anomia jurídica
após o término da vigência da última norma coletiva, em consonância com o
disposto nos arts. 613, parágrafo 3o, e 867, parágrafo único, alínea “b”, da
CLT, que garantem o ajuizamento dos dissídios coletivos antes de expirada a
vigência da norma coletiva em vigor a fim de que a sentença normativa retroceda
ao dia seguinte ao término do prazo da última norma coletiva.
A par disso, a revogação das normas
coletivas de natureza econômica é limitada, tendo em vista que não há como
defender, por exemplo, a revogação dos reajustes salariais expirada a vigência
da norma coletiva. Não há discussão jurídica plausível que defenda esta
revogação, o que faria a categoria retornar ao patamar salarial anterior a
norma coletiva instituidora de reajuste e piso salarial.
O mesmo ocorre no caso do julgamento de
dissídios coletivos, pois não está a Justiça do Trabalho autorizada a
flexibilizar direitos previstos na norma coletiva anterior, por corolário do
art. 114, parágrafo segundo, da Constituição Federal.
É o que defendem os Ministros do
Trabalho, no artigo “A Súmula 277 e a defesa da Constituição”:
(...) As melhores condições de trabalho asseguradas em convenção
coletiva anterior não podem ser suprimidas mediante ação normativa do Estado (Poder
Judiciário) ou pela ausência de negociação coletiva de trabalho. Somente uma
nova negociação coletiva, nunca uma sentença normativa ou o vazio normativo,
poderá reduzir direitos resultantes de negociação coletiva de trabalho”. (CARVALHO, ARRUDA, DELGADO, 2012)
Ademais, as novas possibilidades de
negociação coletiva flexibilizadoras atingirão outro importante princípio do
Direito Coletivo do Trabalho, o Princípio da adequação setorial negociada, que
sob seu manto impõe que as normas juscoletivas apenas podem prevalecer sobre as
normas heterônomas (decorrentes da atuação do Estado e não da vontade coletiva)
quando lhe são superiores em avanços sociais para os trabalhadores do setor ou
flexibilizando normas de indisponibilidade relativa.
O Princípio da Adequação Setorial
garante a transação e não renúncia de direitos e, portanto, de contrapartidas
na negociação, bem como, restringe as possibilidades de flexibilização por meio
de negociação coletiva. Assim, sob melhor juízo, não é possível transacionar
sobre direitos indisponíveis, revestidas de interesse público, tais quais as
normas constitucionais (respeitadas as hipóteses que a própria Constituição
autoriza), os tratados e convenções internacionais ratificados e as normas
infraconstitucionais que fixam patamares existenciais mínimos.
Para Mauricio Godinho Delgado, os
direitos de indisponibilidade absoluta constituem:
(...) um patamar civilizatório mínimo que a sociedade democrática não
concebe ver reduzido em qualquer segmento econômico-profissional, sob pena de
se afrontarem a própria dignidade da pessoa humana e a valorização mínima
deferível ao trabalho (arts. 1o, III, e 170, caput, CF/88). Expressam,
ilustrativamente, essas parcelas de indisponibilidade absoluta a anotação de
CTPS, o pagamento do salário mínimo, as normas de medicina e segurança do
trabalho. (DELGADO,
2008, p. 1402-1403)
Na medida que o sucesso da negociação
coletiva não possui parâmetro normativo básico (norma coletiva anterior) e
somente se produz pela vontade de uma das partes (exigindo comum acordo para o
ajuizamento de dissídio coletivo de natureza econômica), o quadro que se
desenha é de renúncia de direitos. Isto porque “o empregador que não se
oferecesse à negociação lograria obter a supressão das conquistas históricas da
categoria obreira” (CARVALHO, ARRUDA, DELGADO, 2012).
Tendo no horizonte próximo a
prevalência do negociado sobre o legislado, corre-se o risco de esvaziamento de
todo o conteúdo do princípio da adequação setorial negociada.
É importante, por isso, destacar esta
decisão como anúncio do que se aproxima para o Direito Coletivo do Trabalho,
que não encontrará na jurisprudência a importância da negociação e dos
sindicatos para a melhoria das condições sociais dos trabalhadores,
possibilitando a conquista e ampliação de direitos.
A supressão de direitos pela passagem
do tempo e não por negociação coletiva evidencia uma interpretação jurídica de
renúncia de direitos e de desequilíbrio negocial e contratual entre empregados
e empregadores, negando a desigualdade social das relações entre capital e
trabalho e o conteúdo protecionista do Direito do Trabalho.
BIBLIOGRAFIA
CARVALHO, Augusto Cesar Leite, ARRUDA,
Kátia Magalhães, DELGADO, Mauricio Godinho. A
Súmula nº 277 e a defesa da Constituição. Disponível em: http://www.veritae.com.br/artigos/arquivos/artigo%20-%20274.pdf
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São
Paulo: LTr, 2008.
_________ . Princípios do Direito Individual e Coletivo do Trabalho. São Paulo:
LTr, 2013.
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