Endereço: Avenida Rio Branco, nº 817, sala 506 - Florianópolis/SC - (48) 30287880 / (48) 9965 7180 - e-mail: nanasalvatti@uol.com.br

DA ULTRATIVIDADE AO ULTRAJE DAS NEGOCIAÇÕES COLETIVAS: o reflexo da decisão liminar proferida na ADPF n. 323 para o Direito Coletivo do Trabalho


Mariana Salvatti Mescolotto: Advogada, especialista em Direito Material e Processual do Trabalho e assessora jurídica da Federação dos Trabalhadores no Comércio no Estado de Santa Catarina e do Sindicato dos Trabalhadores em Centros de Formação de Condutores no Estado de Santa Catarina.
(STF. Fonte: wikipedia)

Há poucos dias o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, concedeu liminar na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 323, ajuizada pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino, para suspender todos os processos em curso e os efeitos de decisões judiciais proferidas na Justiça do Trabalho que versem sobre a ultratividade.
A ADPF n. 323 tem por objeto a nova redação de 2012 da Súmula 277 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), assim descrita:
CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO OU ACORDO COLETIVO DE TRABALHO. EFICÁCIA. ULTRATIVIDADE 
As cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificadas ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho.   
A redação anterior desta Súmula assim dispunha:
Sentença normativa. Convenção ou acordo coletivos. Vigência. Repercussão nos contratos de trabalho
I - As condições de trabalho alcançadas por força de sentença normativa, convenção ou acordos coletivos vigoram no prazo assinado, não integrando, de forma definitiva, os contratos individuais de trabalho. 
II - Ressalva-se da regra enunciado no item I o período compreendido entre 23.12.1992 e 28.07.1995, em que vigorou a Lei nº 8.542, revogada pela Medida Provisória nº 1.709, convertida na Lei nº 10.192, de 14.02.2001.
O Ministro Relator da ADPF n. 323 entende que a nova redação da Súmula 277 decorreu da Emenda Constitucional (EC) n. 45/2004, que alterou a redação do art. 114, parágrafo segundo, da Constituição Federal (CF), assim disposta:
Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.   (sublinhei)
A redação anterior do art. 114, parágrafo 2º, da CF, previa o seguinte:
Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho
De início, importante destacar que a Relatoria da ADPF foi distribuída por prevenção ao Ministro Gilmar Mendes, pois é ele o Relator das Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade (n. 3423, 3392, 3431 e 3520) que tem por objeto os dissídios coletivos de natureza econômica, especialmente, o “comum acordo”, previsto na Emenda Constitucional n. 45/2004.
A decisão liminar proferida nesta ADPF pelo STF considerou a interpretação do TST arbitrária, pois teria usurpado funções do Poder Legislativo, uma vez que o Princípio da Ultratividade já fora objeto de Lei, tendo sido esta revogada. De fato, o Princípio da Ultratividade foi objeto da Lei n. 8542/1992 em seu art. 1º, parágrafo primeiro, tendo sido a Lei revogada por Medida Provisória no governo de Fernando Henrique Cardoso, posteriormente convertida em Lei (Lei n. 10192/2001), como medida complementar ao Plano Real.
Para o Ministro Gilmar Mendes, a Súmula n. 277 do TST não tem base legal ou constitucional e tende “a aparentemente favorecer apenas um lado da relação trabalhista”.
Mesmo sendo o juízo da ADPF prevento em razão de a temática já estar na pauta do STF, a decisão não levou em conta os direitos dos trabalhadores e, especialmente, as condições atuais das negociações coletivas após a Emenda Constitucional n. 45/2004 e a previsão do comum acordo para os dissídios coletivos de natureza econômica pelo art. 114. 
A decisão parece ter preocupação com a valorização das negociações e normas coletivas, como argumentado na decisão em razão do art. 7º, XXVI, da CF, bem como, ao equilíbrio no conflito entre capital e trabalho e das partes das negociações coletiva. Contudo, não considerou o impacto da reforma constitucional feita pela referida Emenda Constitucional às entidades de classe, que se veem impossibilitadas de instrumentalizar novas normas coletivas pela recalcitrância patronal em negociar, aliás, sem qualquer justificativa, pois, em conformidade com a interpretação literal do “comum acordo”, sem anuência da categoria econômica, não serão demandados dissídios coletivos de natureza econômica, que garantam a reposição salarial aos trabalhadores.
O impasse nas negociações foi estabelecido por meio do comum acordo, pois não há condição melhor ao setor econômico do que o congelamento dos salários e das condições de trabalho. Não negociar ficou extremamente vantajoso para a categoria econômica se for declarada constitucional a EC n. 45/2004, bem como, se prevalecer a interpretação literal ao “comum acordo”.
Apesar de constar da decisão em análise que, “é o exame sistemático das disposições constitucionais integrantes do modelo constitucional que permitirá explicitar o conteúdo de determinado princípio”, não há consideração sobre a melhoria das condições sociais aos trabalhadores (Princípio do Progresso Social, art. 7o, caput, da CF), sobre a função constitucional atribuída aos sindicatos na defesa de interesses e direitos coletivos dos trabalhadores (art. 8o, inciso III, da CF), sobre a valorização do trabalho (arts. 1o, III, e 170, da CF) e sobre a dignidade da pessoa humana, tampouco, consideração sobre a recomposição dos salários, somente possível por meio de negociação coletiva.
O STF também decidiu, recentemente, pela validade do plano de dispensa incentivada por meio de acordo coletivo (RE 590415-RG) “a fim de não desestimular o seu uso”, sendo que, neste julgamento, entendeu o Ministro Gilmar Mendes que “o texto constitucional valoriza, de forma enfática, as convenções e acordos coletivos”, especialmente, “para a mantença do emprego” (possibilitando a redução salarial), a compensação de horários e a redução da jornada de trabalho e a jornada de trabalho em turnos ininterruptos de revezamento.
A decisão destaca e valoriza as negociações coletivas que flexibilizam direitos trabalhistas, tais como as apontadas de redução salarial e alteração da jornada de trabalho, em total sintonia com as movimentações recentes de se privilegiar o negociado sobre o legislado, mas o negociado aqui valorizado é aquele capaz de flexibilizar os direitos dos trabalhadores.
Segundo a decisão, “a doutrina trabalhista indica partir o princípio da ultratividade da norma coletiva da premissa de buscar-se neutralizar a hegemonia da posição do empregador sobre a do trabalhador no momento da negociação coletiva. Com a ideia de inexistir negociação livre entre partes desiguais”. 
Contudo, o caos é ainda maior, caso prevaleça a interpretação literal ao comum acordo pelo STF e se afaste a ultratividade das normas coletivas. Não se trata mais de tratativas desiguais, mas apenas de flexibilização de direitos, uma vez que a possibilidade de manutenção das conquistas anteriores não mais existem, seja pela ultratividade, seja por meio dos dissídios coletivos de natureza econômica.
Vê-se que a manutenção das conquistas anteriores é componente fundamental para a progressão social das condições de trabalho e que, sem ela, já não há mais qualquer razão para que a classe econômica viabiliza uma negociação, a não ser que se reduzam direitos dos trabalhadores. 
A decisão liminar do STF suspendendo a ultratividade das decisões da Justiça do Trabalho e da Súmula n. 277 do TST não quer avanços aos trabalhadores. A intenção de flexibilização é evidente. Para a decisão liminar, a ultratividade ignora “o amplo plexo de garantias constitucionais e legais já assegurados aos trabalhadores, independentemente de acordo ou convenção coletiva. Na existência destes, os empregados não ficam desamparados”, ou seja, a decisão entende que os trabalhadores já têm muitos direitos e que a negociação coletiva não precisa avançar em relação ao que prevê o ordenamento jurídico.
Talvez o Relator preocupe-se com tantos direitos aos trabalhadores e as consequências deste quadro de conquistas de direitos trabalhistas por meio do movimento sindical organizado, pois incorporar normas coletivas benéficas ao contrato de trabalho pode “estimular que o empregador dispense aqueles trabalhadores que tenham cláusulas incorporadas em seus contratos de trabalho, a fim de admitir outros, com benefícios inferiores”. Nesta lógica, ter benefícios inferiores é importante aos trabalhadores, para que se possam manter empregados. 
Nesta lógica social e jurídica, a boa negociação é aquela que não avança. É aquela que mantém o emprego em quaisquer condições, reduz salários, altera a jornada de trabalho, faz concessões, assim, mantém-se o maior número de trabalhadores no seu emprego. Não importa o quanto ganham, quantas horas de trabalho exerçam, etc.
O recado está dado na decisão: “o vocábulo introduzido pela EC 45/2004 é voltado, portanto, a delimitar o poder normativo da Justiça do trabalho. Na hipótese de não ser ajuizado dissídio coletivo, ou não firmado novo acordo, a convenção automaticamente será extinta”.
Mesmo que se argumente que a convenção terá sua vigência expirada, mas que os contratos de trabalho continuarão em vigor e não podem retroceder (sob pena de supressão de outros direitos fundamentais, como da progressão social), a não ser por meio de nova negociação, não resta-nos opção a não ser a concessão de direitos previstos em lei ou na Constituição, pois as normas coletivas não integrarão o patrimônio jurídico dos trabalhadores e das categorias de trabalhadores e não serão patamares sólidos de uma nova negociação.
A decisão do STF despreza a luta histórica dos trabalhadores, das categorias e do movimento sindical nas conquistas dos direitos previstos nas normas coletivas. Ter em consideração aspectos históricos, sociais e jurídicos é, ao ver do Ministro Relator, uma jurisprudência sentimental, panfletária e ativista, e, por isso, descabida. Com base nesta premissa, atribui ao TST o uso de uma interpretação constitucional arbitrária ao afastar limites do Estado democrático de direito “para favorecer grupo específico”, “sem nenhuma base legal ou constitucional”.
Tal entendimento considerado arbitrário pelo Ministro Marco Aurélio é há muito defendida por muitos juristas da área trabalhista, como pelo o Ministro Maurício Godinho Delgado, o qual na obra Curso de Direito do Trabalho (São Paulo, LTr, 2008, p. 161/162) explica que há três correntes interpretativas sobre a aderência contratual das normas coletivas: aderência irrestrita, não podendo mais ser suprimidas; aderência limitada pelo prazo, restringindo-se ao período de vigência da norma coletiva e; aderência limitada por revogação, vigorando até novo diploma negocial o revogue, defendendo esta última, pelos seguintes fundamentos:
Tal posição é tecnicamente mais correta, por se estar tratando de norma jurídica - e norma provisória é, regra geral, uma excepcionalidade. Doutrinariamente é também mais sábia, por ser mais harmônica aos objetivos do Direito Coletivo do Trabalho, que são buscar a paz social, aperfeiçoar as condições laborativas e promover a adequação setorial justrabalhista. Ora, a provisoriedade conspira contra esses objetivos, ao passo que o critério da aderência por revogação instaura natural incentivo à negociação coletiva.
O incentivo da ultratividade à negociação é nítido, tendo em vista que “reconhece a natureza de norma jurídica dos dispositivos convencionais negociados e acentua a força que o ramo juscoletivo confere à negociação via sindicatos” (DELGADO, 2013, p. 115).
Vê-se que a própria redação do inciso I, da redação anterior da Súmula 277, não impedia a aplicação da aderência por revogação, uma vez que restringia a aderência definitiva das normas coletivas ao contrato de trabalho, o que não é defendido pela corrente da aderência limitada por revogação, como se pode verificar do entendimento dos Ministros do TST:

A ultra-atividade da norma coletiva, quando adotada a ultra-atividade condicionada, assegura a eficácia da convenção ou acordo coletivo cujo prazo de vigência estaria exaurido, de modo a não permitir que a categoria de empregados permaneça sem uma disciplina de suas condições específicas de trabalho. Sendo condicionada à superveniência da nova norma coletiva, o surgimento de nova normatização da matéria faz prevalecer a regra mais recente, ainda que tal signifique a redução de direito.  (CARVALHO, ARRUDA, DELGADO, 2012)
Os mesmos Ministros do TST entendem que a defesa da ultratividade condicionada à revogação impede a anomia jurídica após o término da vigência da última norma coletiva, em consonância com o disposto nos arts. 613, parágrafo 3o, e 867, parágrafo único, alínea “b”, da CLT, que garantem o ajuizamento dos dissídios coletivos antes de expirada a vigência da norma coletiva em vigor a fim de que a sentença normativa retroceda ao dia seguinte ao término do prazo da última norma coletiva.
A par disso, a revogação das normas coletivas de natureza econômica é limitada, tendo em vista que não há como defender, por exemplo, a revogação dos reajustes salariais expirada a vigência da norma coletiva. Não há discussão jurídica plausível que defenda esta revogação, o que faria a categoria retornar ao patamar salarial anterior a norma coletiva instituidora de reajuste e piso salarial. 
O mesmo ocorre no caso do julgamento de dissídios coletivos, pois não está a Justiça do Trabalho autorizada a flexibilizar direitos previstos na norma coletiva anterior, por corolário do art. 114, parágrafo segundo, da Constituição Federal.
É o que defendem os Ministros do Trabalho, no artigo “A Súmula 277 e a defesa da Constituição”: 
(...) As melhores condições de trabalho asseguradas em convenção coletiva anterior não podem ser suprimidas mediante ação normativa do Estado (Poder Judiciário) ou pela ausência de negociação coletiva de trabalho. Somente uma nova negociação coletiva, nunca uma sentença normativa ou o vazio normativo, poderá reduzir direitos resultantes de negociação coletiva de trabalho”.  (CARVALHO, ARRUDA, DELGADO, 2012)
Ademais, as novas possibilidades de negociação coletiva flexibilizadoras atingirão outro importante princípio do Direito Coletivo do Trabalho, o Princípio da adequação setorial negociada, que sob seu manto impõe que as normas juscoletivas apenas podem prevalecer sobre as normas heterônomas (decorrentes da atuação do Estado e não da vontade coletiva) quando lhe são superiores em avanços sociais para os trabalhadores do setor ou flexibilizando normas de indisponibilidade relativa. 
O Princípio da Adequação Setorial garante a transação e não renúncia de direitos e, portanto, de contrapartidas na negociação, bem como, restringe as possibilidades de flexibilização por meio de negociação coletiva. Assim, sob melhor juízo, não é possível transacionar sobre direitos indisponíveis, revestidas de interesse público, tais quais as normas constitucionais (respeitadas as hipóteses que a própria Constituição autoriza), os tratados e convenções internacionais ratificados e as normas infraconstitucionais que fixam patamares existenciais mínimos. 
Para Mauricio Godinho Delgado, os direitos de indisponibilidade absoluta constituem:
(...) um patamar civilizatório mínimo que a sociedade democrática não concebe ver reduzido em qualquer segmento econômico-profissional, sob pena de se afrontarem a própria dignidade da pessoa humana e a valorização mínima deferível ao trabalho (arts. 1o, III, e 170, caput, CF/88). Expressam, ilustrativamente, essas parcelas de indisponibilidade absoluta a anotação de CTPS, o pagamento do salário mínimo, as normas de medicina e segurança do trabalho. (DELGADO, 2008, p. 1402-1403)
Na medida que o sucesso da negociação coletiva não possui parâmetro normativo básico (norma coletiva anterior) e somente se produz pela vontade de uma das partes (exigindo comum acordo para o ajuizamento de dissídio coletivo de natureza econômica), o quadro que se desenha é de renúncia de direitos. Isto porque “o empregador que não se oferecesse à negociação lograria obter a supressão das conquistas históricas da categoria obreira” (CARVALHO, ARRUDA, DELGADO, 2012). 
Tendo no horizonte próximo a prevalência do negociado sobre o legislado, corre-se o risco de esvaziamento de todo o conteúdo do princípio da adequação setorial negociada. 
É importante, por isso, destacar esta decisão como anúncio do que se aproxima para o Direito Coletivo do Trabalho, que não encontrará na jurisprudência a importância da negociação e dos sindicatos para a melhoria das condições sociais dos trabalhadores, possibilitando a conquista e ampliação de direitos.
A supressão de direitos pela passagem do tempo e não por negociação coletiva evidencia uma interpretação jurídica de renúncia de direitos e de desequilíbrio negocial e contratual entre empregados e empregadores, negando a desigualdade social das relações entre capital e trabalho e o conteúdo protecionista do Direito do Trabalho. 
BIBLIOGRAFIA
CARVALHO, Augusto Cesar Leite, ARRUDA, Kátia Magalhães, DELGADO, Mauricio Godinho. A Súmula nº 277 e a defesa da Constituição. Disponível em: http://www.veritae.com.br/artigos/arquivos/artigo%20-%20274.pdf
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2008.
_________ . Princípios do Direito Individual e Coletivo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2013.
 ________________________________________________________________________________

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente esta notícia!